Opressão revestida de 'tradição' está por trás de trotes abusivos na universidades, diz especialista
10/06/2025
(Foto: Reprodução) Internações de alunos em coma alcoólico após festa de estudantes da Unesp em Jaboticabal (SP) levantam alerta sobre relações autoritárias, pertencimento e autoestima no ambiente acadêmico. Imagens em redes sociais mostram festa no domingo (25), quando universitários passaram mal após ingestão de bebida alcoólica em Jaboticabal (SP).
Reprodução/ Redes sociais
Aceitar um apelido desagradável, ingerir alimentos e bebidas mesmo sabendo o quanto isso pode fazer mal, prestar favores ou se sujeitar a situações vexatórias, como se fosse uma obrigação. Ser forçado a dar dinheiro a terceiros e ter a sensação de estar sendo perseguido e não poder falar nada a ninguém. Ter a aparência, a origem, a condição e a sexualidade questionadas e desrespeitadas.
A coação que contamina a relação entre veteranos e calouros nas universidades brasileiras não é algo novo e, mesmo sendo criminosa, passível de responsabilização no Código Penal, e alvo de iniciativas das próprias instituições de ensino, se posterga geração após geração, às vezes em formas diferentes, às vezes em situações que parecem apenas se repetir.
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Por trás de trotes, como os que alunos da Unesp de Jaboticabal (SP) alegam ter sofrido antes de serem internados em coma alcoólico no fim de maio, existe algo silencioso e naturalizado por toda uma estrutura de relações no ambiente acadêmico. É o que se define como violência simbólica, segundo o coordenador do Observatório de Violência e Práticas Exemplares da USP de Ribeirão Preto (SP).
"São relações de poder que na verdade são justificadas como tradição, como rito de passagem, mas nesse processo acabam havendo comportamentos abusivos, porque os veteranos também sofreram todo esse processo de violência, então é meio que uma repetição", afirma.
No fim de maio, segundo denúncias de familiares, calouros da Unesp de Jaboticabal foram obrigados a beber, além de comer alho e cebola, para que conseguissem pulseiras para a "Festa dos 100 dias", que acabou adiado depois do que ocorreu.
De acordo com a Prefeitura, sete estudantes passaram a mal e precisaram ser atendidos na UPA. Cinco foram liberados ainda no domingo, mas dois chegaram a ser levados para a UTI em coma alcoólico. Eles já receberam alta.
O caso foi registrado como lesão corporal pela Polícia Civil, que investiga o caso. Além disso, as autoridades querem saber o que tinha na bebida ingerida pelos alunos.
A Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp de Jaboticabal abriu uma apuração preliminar e começou a ouvir estudantes envolvidos.
Nos tópicos a seguir, entenda alguns aspectos que ajudam a explicar a manutenção das práticas abusivas entre alunos nas universidades:
As pressões vividas pelo estudante
Kodato explica que, assim que chega a uma universidade, além de mudanças importantes, muitas vezes marcadas pela saída da casa dos pais e a vida em uma nova cidade sem amigos e familiares, o estudante é exposto a pressões e cobranças que acabam por deixá-lo mais vulnerável e que aparecem de diferentes formas.
Uma delas, segundo o psicólogo, vem da própria competição entre os alunos que, desde o início, são chamados a disputar bolsas de estudo, projetos de iniciação científica e a preferência de professores para orientações.
"Pode-se dizer que tenha esse paradigma, esse modelo de competição exacerbada, principalmente em função do oferecimento de bolsas e outras vantagens. Se você quer fazer pós-graduação, você já tem que começar a 'puxar o saco' de determinados professores e se integrar a um grupo de pesquisa", exemplifica.
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Nesse contexto também entra como um agravante os conflitos causados pelas diferenças sociais dos estudantes. "Existe muita gente que vai de carro do último tipo, esse tipo de coisa, e muita gente que não tem dinheiro nem para refeição do dia. Isso acaba gerando um ciclo todo de estereótipos, preconceitos e exclusões sociais."
Outro fator importante é a postura autoritária de parte dos professores, muito por conta de uma herança de comportamento das relações observadas no período da Ditadura Militar, segundo Kodato.
Muitos desses docentes, de acordo com o coordenador do Observatório de Violência e Práticas Exemplares da USP, além de tentar humilhar os graduandos com base em sua trajetória acadêmica, acabam por legitimar e naturalizar os trotes contra os calouros.
"Vai muito além do trote. São todos os rituais acadêmicos que exigem que você se adapte à às regras da instituição. Isso acaba levando a uma pressão. (...) Tem a a pressão dos professores. Todo professor que entra em sala exerce uma pressão em cima dos alunos. Tem a pressão da instituição. Tem a pressão da família e tem a pressão do tal do futuro. Tudo isso acaba levando a um ambiente de muita ansiedade."
O pertencimento ao grupo social e as relações de poder
Colocado em um novo contexto, quando consegue uma vaga em uma universidade, o estudante tem o desejo de fazer parte do grupo social, o que é naturalmente humano, segundo o psicólogo.
E é na busca da sensação de pertencimento que, muitas vezes, esses jovens acabam por cair na armadilha de se sujeitar a situações vexatórias como os trotes para demonstrarem que são fortes e dignos.
O fator coletivo, nesse caso, tem um grande peso sobre o comportamento individual, analisa o professor da USP.
"Não é de um veterano para um calouro. É do grupo de veteranos para todos os calouros. 'Vocês têm que usar boina'. 'Não, não quero usar boina'. Então você já está sendo rebelde e vai sofrer todas as consequências de alguém que é rebelde.", exemplifica.
Quem não se encaixa a essas normas, seja por não beber e por não demonstrar um comportamento sexual considerado adequado pelo grupo, explica Kodato, acaba sendo vítima de estereótipos e preconceitos e, por fim, corre o risco de ser isolado dos demais.
Depois de submetidos a determinadas práticas de iniciação, em vez de questionarem os abusos, muitos dos estudantes acabam por postergar essa cultura a partir do momento em que assumem o papel de veteranos, o que alimenta um ciclo de relações de dominação e conformidade dentro das universidades.
"Eles agora no papel de autoridade, de empoderamento, exercer o poder dá um um certo prazer no final das contas", ironiza o professor.
O que instituições e alunos devem fazer
Além de estimular campanhas contra os abusos de trotes, as instituições de ensino precisam disponibilizar formas de atendimento para garantir a saúde mental dos estudantes, como também canais de denúncia seguros para práticas abusivas.
"Teria que ter canais seguros para essas denúncias também, porque eles não denunciam porque tem medo de retaliação", diz o professor.
Os estudantes, por sua vez, precisam buscar formas saudáveis de socialização, muitas vezes possíveis por meio de iniciativas das próprias universidades como grupos de trabalho e de estudo que tratam de problemas como depressão e ansiedade.
"A ideia é durante o curso ele buscar a autonomia dele, não ficar submisso."
Veja reportagem da EPTV sobre trote com alunos universitários de Jaboticabal:
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